domingo, 31 de janeiro de 2016

O homem que escrevia sonho
Jacques Bergier
Extraído da revista Planeta 28.12.1974
Lovecraft, cuja obra sofre processo de reavaliação, foi um segundo Allan Poe. Viveu na penúria, às vezes não tinha dinheiro pra sair de casa. Não tolerava frio, tinha alergia a mar, vivia doente. Fracassou no casamento e nas tentativas de escrever estórias normais pràs revistas. Se considerava um exilado em sua terra. Suas estórias reproduzem seus sonhos. Através do sonho conhecia Paris tão bem quanto um parisiense. Seu grande mérito consiste em ter conquistado à imaginação imensos domínios nos quais ela jamais se aventurara.
O grande mérito de Lovecraft consiste em ter conquistado à imaginação humana imensos domínios nos quais ela jamais se aventurara. Seu pensamento penetrou tão longe quanto o pensamento humano pode alcançar em nossos dias. Criou um mito do qual diz que encerraria um significado pros cérebros compostos pelo gás das nebulosas espirais. Um mito que exprime a grandeza e o temor cósmico não só em escala humana mas pra toda a inteligência, mesmo se sua forma exterior não se assemelha à nossa. Pois toda inteligência, mesmo mais poderosa que a nossa, deve sentir o temor aos espaços infinitos, que paralisava Pascal. A ciência confirmou plenamente a existência dessas enormes extensões de tempo e espaço após a morte de Lovecraft. A radiatividade permitiu demonstrar que a vida existe na Terra há mais ou menos 3 bilhões de anos.
  As dimensões do universo acabam de dobrar, como conseqüência de experiências mais precisas. HP Robertson, na América do Norte, e Vorontzov-Veliaminov, na União Soviética, chegaram à conclusão de que o universo é infinito no espaço e no tempo e não finito e curvo como Einstein acreditava.
  Deste universo talvez infinito os radiotelescópios recentemente inventados captam sinais que não parecem provir das estrelas que são talvez a manifestação de fenômenos naturais desconhecidos e que talvez emanem de inteligências que dispõem de meios de ação infinitamente superiores aos nossos. Nesse infinito de espaço e de tempo não existiriam atividades superiores a nossa atividade de micróbio, atividades que se colocam na escala do universo, tal como a ciência nos demonstra?
  A reação a essa idéia dum universo vivo e rico não só de fatos naturais desconhecidos como de atividades vitais situadas além do raio de nossa imaginação varia evidentemente com a mentalidade de quem o encara. Lovecraft respondeu cum temor que conseguiu comunicar ao leitor de maneira prodigiosa. Outras reações são evidentemente possíveis. A atitude de Lovecraft se explica, ao menos em parte, por sua psicologia pessoal.
  Um doente bloqueado pela doença e pela pobreza
  Quanto a Lovecraft (1890-1937), suas publicações até o momento não revelavam muita coisa a respeito do autor. A chave de prata é a única autobiografia espiritual de Lovecraft que chegou até nós. Nos faz seguir o caminho que conduz a fora de nosso universo, nos contornos do desconhecido. Esse caminho percorre, até certo ponto, a rota da ciência. Noutro lado, se separa nitidamente do ocultismo. A respeito desse assunto Lovecraft exprime um julgamento severo: A estupidez crassa, o julgamento falso e a rigidez de espírito não substituem o sonho.
  Esse caminho, que penetra fundo no desconhecido tanto quanto é possível ao espírito humano, só pode ser seguido pela imaginação, amparada por conhecimentos científicos e históricos profundos. Tal caminho está aberto a todo mundo, mesmo Lovecraft, o doente encarcerado na doença e na pobreza (o deportado que fui também percebeu que esse caminho de evasão existe e que leva a muito longe, muito além dos fios de arame farpado dum campo de concentração).
  Esse caminho existirá sempre. Mesmo se um dia o homem desenvolver astronaves ou máquinas ainda mais maravilhosas que viajem no tempo e nas dimensões, além dum ponto extremo atingido fisicamente se estenderão os domínios acessíveis unicamente ao espírito humano. Pra seguir esse caminho Lovecraft começara absorvendo uma grande parte do saber humano. Nunca me acontecera me corresponder cum ser a tal ponto onisciente. Conhecia um número incalculável de idiomas, entre eles, quatro línguas africanas: Damora, suaíli, chulu e zani, bem como dialetos. Escrevia com idêntica erudição a respeito de matemática, as cosmogonias relativistas, a civilização asteca, Creta antiga e a química orgânica.
  Absorvia o saber numa espécie de osmose extraordinária. Quando lhe escrevi o cumprimentando por ter descrito um bairro pouco conhecido de Paris, em A música de Erich Zann, lhe perguntei se já visitara a capital francesa, ao que me respondeu: Como Poe, em sonho.
  Em sua casa da rua Barnes, 10, em Providência (Ilha-de-Rodes), viajara a todos os países descritos ou imaginados pelos homens. De todos esses países, era o século 18 norte-americano seu preferido, admiravelmente descrito no início de seu romance O caso Charles Dexter Ward. Se encontrava perfeitamente à vontade naquele século e devia sonhar cuma máquina que o transportasse até lá, através do tempo. Escreveu: O combate contra o tempo é o único assunto que importa a um romance. Marcel Proust não o desmentiria.
  Não era com grande freqüência que Lovecraft saía de sua casa da rua Barnes. A pobreza o impedia. A pobreza e também uma hostilidade que as coisas lhe manifestavam. Não tolerava frio, mesmo que não fosse muito rigoroso, e todo contato com o mar ou com objetos originários do mar o adoecia. Portanto se locomoveu muito pouco. Uma viagem ao sul de Estados-Unidos, uma estada em Nova Iorque e algumas excursões na região de Bóston foram suas únicas andanças conhecidas.
  Se desforrou viajando a muito longe na imaginação e no sonho. Os sonhos de Lovecraft eram duma precisão extraordinária. Algumas de suas novelas são nada mais que a transcrição deles. Freqüentemente enviou a mim narrativas detalhadas. Tais narrativas eram extraordinárias pela força da imaginação e a coerência dos detalhes. Conhecia profundamente a obra de Sigmund Freud mas pouco acreditava nela. Com efeito, a psicanálise teria dificuldade em explicar construções tão coerentes quanto o romance No abismo do tempo. De resto, o caso de Lovecraft não é único. Lovecraft reafirmou a importância dos sonhos numa novela intitulada Além do muro do sono. As viagens imaginárias, que no início eram apenas uma evasão, se tornaram rapidamente a parte essencial de sua vida. Porém mesmo nos sonhos conservava os traços essenciais de seu caráter: O rigor científico da lógica. Raramente conheci um materialista mais convicto ou um amador que melhor compreendesse a matemática. Em circunstâncias diversas se tornaria um físico extremamente brilhante. Uma vez mais a pobreza e a doença barraram seu gênio. Parece inconcebível que em um país como Estados-Unidos, onde se ganha tão facilmente dinheiro, um homem da cultura de Lovecraft jamais conseguira receber mais de 15 dólares por semana. Na época um lavador de prato num restaurante ganhava 60 ou 70 dólares, realizando um trabalho menos penoso que o de Lovecraft, o qual levava mais de 10 horas por dia colocando em bom inglês as novelas e romances destinados às revistas norte-americanas. Mais duma vez seus amigos tentaram o fazer ganhar um pouco mais, o encorajando a escrever suas narrativas, cuja trama é, com freqüência, muito simples. As revistas norte-americanas da época eram muito especializadas (a televisão e a preferência pelas estórias-em-quadrinho então ainda não surgiram). Havia revistas dedicadas a estórias de vaqueiro, amor, policiais, bombeiros, pólo norte e a estórias da floresta, etc. Lovecraft foi obrigado a passar em todos esses gêneros. Os editores devolviam suas narrativas. Se tratava de obras que pareciam escritas por um marciano. Num inglês perfeito o autor revelava sua ignorância relativa aos detalhes mais normais da vida quotidiana. Não sabia o que era um homem, uma mulher, o dinheiro, o metrô, um cavalo e ignorava até as realidades mais fundamentais da vida norte-americana: A situação (job), a posição (standing), a necessidade do conforto e do progresso material. Às cartas estupefatas dos editores dava a seguinte resposta: Peço desculpa, mas a pobreza, a tristeza e o exílio fizeram com que tudo isso saísse de minha cabeça. Exílio: Eis a palavra-chave. Lovecraft sempre se comportou como um estrangeiro, um ser vindo de alhures. De tempo a tempo surgem seres desse gênero. Kafka, que, ao que parece, não conheceu Lovecraft, talvez seja outro exemplo.
  Vivendo entre nós como um exilado, seria inútil lhe pedir que apreciasse nossos valores. Seu casamento naturalmente foi um fracasso e as tentativas de o lançar foram todas fadadas ao insucesso. Nenhuma história da literatura norte-americana, nenhum dicionário de literatura, nenhum Who's who[1] mencionou seu nome.
  O único realismo digno da grandeza do universo
  No entanto acreditava na importância do realismo fantástico: Esse ramo da literatura foi cultivado por grandes escritores, como Lord Dunsany, e por fracassados como eu. Constitui o único realismo verdadeiro, a única tomada de posição do homem frente ao universo. Sempre tive a impressão de que falaria mais se o pudor e o temor ao ridículo não o impedissem. Era muito reservado em relação aos seres humanos. A única forma de vida neste planeta que merecia sua confiança era o gato. Em sua casa sempre havia muitos, e conseguia estabelecer com eles a comunicação secreta que os amigos dos gatos tão bem conhecem. Se atemorizava com as visões que evocava? Não acredito. Simplesmente escolheu o terror como assunto de seu relato, como meio de nos fazer compreender a imensidão do universo e as forças que nele se movem.
 



[1] Who's who: Compilação de breves esboços biográficos de personalidades em determinado campo. Nota do digitalizador

4 comentários:

  1. ola, jorge.
    pesaroso ao receber essa noticia do passamento do joanco.
    quero crer que onde ele estiver, ele estará te acompanhando.
    amigos sao assim.
    estou solidario com seus sentimentos.
    um forte abraço pra voce.
    e pra joanco, que sua jornada seja de muita paz e luz !

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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